quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Ida ao Engenhão faz mal à audição

No domingo, fui com a Ane de ônibus para a porta do Engenhão. Ela marcou de encontrar um carinha, que ela estava pegando no fim do jogo. Eu aproveitei pra visitar uma amiga, que mora ali perto:

Ane: Nada a ver ter medo de vir de carro pra cá.

Adalberto: Não é medo exatamente.

Ane: É o que, então?

Adalberto: Sei lá, receio.

Ane: Na torcido do Fluminense só tem playboyzinho, Adal. Ninguém ali ia querer o seu carro popular.

Adalberto: Acho que isso é um pouco de lenda. De mais a mais, eu não conheço a índole da torcida do Guarani.

Ane: Imagina. Povo do interior de São Paulo não é capaz de fazer mal a uma mosca.

Adalberto: Ane, você devia ter consertado o seu carro, em vez de ficar aí falando.

Ane: Não tive tempo pra isso.

Adalberto: O quê?

Ane: Não tive tempo pra isso.

Adalberto: Não entendi.

Ane: Garoto, tu tá surdo?

Adalberto: Não. Se bem que, segundo o teste de audiometria lá da empresa, se eu perder mais um pentelésimo da minha audição do ouvido direito, eu já posso ser considerado deficiente auditivo.

Ane: Mentira.

Adalberto: Sério.

De repente, uma música de louvor começou a tocar dentro do coletivo. Engraçado que esse é o tipo de coisa que, em vez de me trazer paz, só me causa aflição.

Ane: Não acredito que a gente vai ter que ouvir isso daqui até lá.

Adalberto: Nem eu.

Ane: Acho que vou incorporar a Lu e fazer um escândalo com ele. Isso é falta de respeito.

Adalberto: Não ouvi.

Mentira. Ouvi, sim. Mais me prevaleci da minha quase deficiência auditiva pra não dar o empurrãozinho, que a motivação da Ane precisava pra jogar o celular do cara pela janela.

Ane: Tem horas?

A Ane, agora, falava comigo fazendo gestos.

Adalberto: Não.

Ane: Porra, tu não ouve, não tem horas, não quis vir de carro... Hoje, você tá uma negação.

Adalberto: Não. Não acho.

O celular de um homem, nitidamente, bêbado tocou. Ele falava tão alto quanto o louvor. Parecia uma disputa. De quem me irritava mais.

Bêbado: Eu falei pra ela não beber a Coca-Cola toda. Era pra deixar pro irmão dela. Não. Eu já vendi um carro pra fazer festa pra essas crianças, Doroth, não vou ficar fazendo a vontade de Eliandra e Cristóvano, não. Manda tudo pra puta que pariu, porra! Não, quando eu falo com você que não é pra ficar mimando essas criança, tu acha que eu tô de sacanagem. Sabe qual é o problema? Ivoneth se mete, Daysianny se mete, Edilenny se mete Doriaanny se mete, Silmarianny se mete. Todo mundo acha que cria os nossos filhos.

A ladainha parecia que nunca ia acabar. Nem os nomes mais esquisitos, que eu ouvi na minha vida. As caras da Ane eram as melhores.

E quando a gente acha, que nada mais pode acontecer pra piorar, eis que entra no ônibus um menino com a camisa do Fluminense, vendendo quase que se pode imaginar dentro de um saquinho. Pelo visto, são não tinha a mãe dele, em porção de cinco unidades, pelo preço de um real.

Menino: Boa tarde senhoras e senhores. Desculpe incomodar o vossa viagem.

Acho incrível que, quando eles querem agradar, prezam por uma Língua Portuguesa melhor.

Ane: Vossa viagem...

Adalberto: Viu? Nem a gente fala assim.

Ane: É porque ele é Fluminense. Deve ser um desgarrado de uma família rica.

Menino: Eu podia estar matando, eu podia estar roubando, mas eu eestou aqui, meus senhores, vendendo esta bala, este chiclete, esta bananada, este chocolate, este chup-chup, este confete, esta jujuba, este delicado, este pirulito, este...

Bêbado: Porra, dá pra calar a boca, caralho?! Tô resolvendo uma parada séria com a minha mulher aqui e tud fica aí de palhaçada?

Não, ele não estava de palhaçada. Estava trabalhando. Estava me irritando também, mas, sobretudo, estava fazendo algo de mais útil do que ficar ouvindo louvor nas alturas e berrando no celular.

O menino cagou solenemente pras grosserias do bêbado. Jamais parou de entoar o seu mantra sensacionalista-comercial.

Menino: Meninha mãe amputou uma perna, meu pai está internado numa UTI.

Foi fofo o jeitinho que ele falou UTI.

Menino: Meu irmão mais velho é excepcional, minha irmã mias nova tem síndrome do pânico, por já ter sido estuprada.

Ele falou estuprada corretamente. Só mesmo um vendedor de balas tricolor pra conseguir essa proeza.

Menino: Então, senhoras e senhores, eu ficaria muito grato se vocês pudessem me ajudar.

E a minha quase deficiência auditiva ficaria muito grata se o carinha do louvor, deligasse o celular, se o bêbado também desligasse o celular e se o menino da bala se desligasse. Só por quinze minutos. Até eu chegar ao Engenhão.

A poucos metros do estádio, fomos parados numa blitz. Me assustei com o bolsa, que o menino jogou na minha direção. Na minha cabeça, pensei: os policiais devem cobrar uma certa propina desses de quem pratica o comércio ilegal. Segurei a bolsa, como se fosse minha. O menino desceu do ônibus. E eu achava que aquilo era parte de uma encenação. De fato era. Mas não da maneira, que a minha mente cinematográfica, era capaz de imaginar.

Nisso, um policial que estava revistando os passageiros, pergunta se a bolsa é minha, eu respondo que sim e, meia-hora depois, estava eu sendo preso numa delegacia. A bolsa tinha cocaína, maconha e uma 38. O bêbado e o carinha que estava ouvindo o louvor no celular fizeram questão de ir até a delegacia pra depor a meu favor. Depois de duas horas, consegui me livrar da prisão. Prometi ao carinha do louvor, que iria com ele ao templo, que ele frequentava pra agradecer a Deus, por ter me livardo dessa enrascada. E segui com o bêbado pro primeiro barzinho de esquina, que pudemos avistar.

Ane: Perdi meu peguete, por causa de você.

Adalberto: Tá maluca? Eu não tenho culpa de nada.

Ane: Tem, sim. Você ficou de miserê. Não quis vir de carro.

Adalberto: Que miserê? Fiquei com medo dessa torcida do Fluminense fazer alguma coisa com o meu carro.

Ane: Até parece.

Bêbado: Para de brigar vocês dois. O importante é que a gente tá com saúde.

Pior que é verdade.

E com toda a falta de vergonha na cara do mundo, que eu e a Ane temos, brindamos à vida.

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