sábado, 2 de fevereiro de 2013

A revolta contra a Moma Maluca

Ontem, no fim da tarde, a Sara, a Lu e a Ane foram para a minha casa. A Marjorie, não, porque tinha um compromisso com o novo namoradinho. Ficamos conversando, rindo, comendo e bebendo. E quando já não tínhamos mais nada para fazer, decidimos ver um filme.

Ane: O que você tem aí de bom, Adal?

Adalberto: Quase nada. O que vocês querem ver? Romance, terror, comédia, drama...

Sara: Comédia.

Ane: Romance.

Lu: Terror.

Adalberto: E eu quero drama. Portanto, como estamos na minha casa e, aqui, quem manda sou eu, vamos ver um drama.

Ane: Nada disso.

Lu: Eu vou embora, então.

Adalberto: Está bem, tchau.

Ane: Não. Se ela for, eu também vou.

Adalberto: Tchau para você também. Só não esquece de fechar a porta.

Sara: Assim, não, Adal. A gente veio aqui para passar a tarde com você.

Adalberto: Já passou das seis, já é noite. Obrigado pela companhia.

Lu: Esse garoto é muito grosso.

Adalberto: Grossa é você.

Ane: Vamos, gente. Deixa ele aí sozinho.

Sara: Primo, você tem que entender que a gente viver numa democracia.

Adalberto: Fora da minha casa. Aqui dentro é do jeito que eu quero, ditadura.

Lu: Ridículo!

Ane: Vamos, gente. E, a partir de agora, a gente não pisa mais aqui nessa casa.

E como eu ia viver sem elas?

Adalberto: Não! Eu estava brincando. Calma! Sara, dá uma ideia. Como a gente faz para escolher a filme, que a gente vai ver? Sorteio, não sei, dá uma ideia.

Sara: Vamos fazer zerinho ou um, como a gente fazia quando era criança?

Adalberto: Tudo bem. Ane, Lu, não vão embora, não. Eu amo vocês.

E elas ficaram, claro. Elas não resistem a minha chantagem emocional barata.

A Ane ganhou no zerinho ou um e eu me dei conta de que não tinha nenhum filme de romance na minha casa.

Ane: Ah, escolhe aí qualquer coisa, então, Adal.

E eu, que tinha plantado toda aquela discórdia para ver um drama, escolhi "A noiva do Chucky", uma comédia. Não tenho vergonha na cara mesmo.

Lu: Só rindo...

No meio do filme, a campainha tocou.

Sara: Adal, você está esperando alguém?

Adalberto: Não.

Ane: Ai, Sara, que perguntinha mais novela das oito essa sua, hein.

Adalberto: Isso é muito pergunta  "nada a ver" de novela.

Lu: Muito! Eu vou ter que contar para os autores, que o porteiro, o entregador de flores e o religioso, que distribui livrinho, não marcam hora com a gente?

Ane: Mas você  já viu que, quando são essas pessoas que tocam a campainha nas novelas, ninguém pergunta nada?

Adalberto: Verdade... Deve ser porque, para isso, não precisa suspense. Enfim, isso merece um estudo mais profundo, mas agora, deixa eu abrir a porta, antes que o porteiro, o entregador de flores ou o religioso, que distribui livrinho, vá embora. Dá um pause aí no filme.

Era a Marjorie.

Marjorie: Surpresa!

Adalberto: Isso não é uma surpresa. Aconteceu alguma coisa, fala logo.

Marjorie: Ai, primo, eu quero chorar.

Adalberto: Vem cá, minha flor, me dá um abraço. A gente está na metade de um filme, mas pode começar de novo, se você quiser.

Marjorie: Adal, eu mal tenho tempo para esse seu abraço. Vocês precisam me ajudar agora.

Sara: O que foi que aconteceu?

Marjorie: Eu contei para vocês que o Deucleciano coleciona bonecas?

Lu: Não. Coisa ruim, a gente esconde.

Marjorie: Mas nem é isso. Eu ia contar para vocês. Não tive tempo.

Adalberto: Marjorie, o teu namorado coleciona boneca? Como assim?

Marjorie: Ele é filho único e, desde bem novinho, queria ter uma irmãzinha. A mãe dele não queria mais filho e deu para ele uma boneca de presente de Natal e disse que era a irmãzinha, que ele tanto pedia.

Ane: Quando isso?

Marjorie: Ah, sei lá. Ele era pequeno.

Lu: E como é que ele começou a colecionar boneca?

Marjorie: Ele começou pedindo outra irmãzinha e outra, e outra, e outra e por aí vai... Fora que, às vezes, ele estragava uma boneca, que para ele era uma irmãzinha, e a mãe tinha que repor.

Sara: Que coisa de doido, né?

Marjorie: É... Ele cresceu e, quando se deu conta de que as bonecas não era suas irmãzinhas, já era tarde. Ele já estava apegado a todas elas. E não para de aumentar o acervo.

Adalberto: Mas qual é o motivo do teu desespero?

Marjorie: A Moma Maluca.

Ane: O quê? Ele tem uma Moma Maluca?

Marjorie: Tem. Quer dizer, tinha. É por isso que eu estou aqui.

Adalberto: O que aconteceu?

Marjorie: A gente já está saindo há umas duas semanas direto. Ele levou umas roupas para deixar lá em casa e umas bonecas. E a Moma Maluca estava entre elas. Gente, eu não conseguia dormir com a Moma Maluca no meu quarto. Parecia que ela estava olhando para mim.

Lu: Eu tenho pavor da Moma Maluca.

Adalberto: Eu também.

Sara: Gente, vocês me falaram na época, mas eu não consigo acreditar nessa história de que a Moma Maluca vinha com uma faca dentro.

Ane: Sara, se você não tem medo, vai num antiquário comprar uma Moma Maluca para as suas filhas.

Sara: Eu,. não.

Ane: Então, pronto. Gente, eu morria de inveja, quando ia brincar com a Camilinha, porque ela era a única que tinha uma Moma Maluca.

Sara: A Camilinha é a filha da Selma?

Ane: Isso.

Sara: Como é que ela está, hein.

Ane: Está bem, parece que vai casar daqui há duas semanas. Mas deixa eu falar da Moma Maluca!

Lu: Fala!

Ane: Um dia, ela me emprestou a Moma Maluca para levar para casa. E o meu egoísmo e a minha inveja me fizeram descobrir, que a quela boneca vinha com um facão dentro. Eu cortei a Moma Maluca da Camilinha toda e, quando vi aquele facão dentro da barriga dela, chorei de medo.

Lu: Eu lembro disso, deu o maior rolo lá na rua, ninguém acreditou em você. Minha tia teve que comprar outra Moma Maluca para a Camilinha...

Marjorie: Gente, essa boneca é maldita, não foi à toa que ela foi um boom de vendas. Mas, agora, eu preciso falar. Eu estou desesperada, eu preciso da ajuda de vocês.

Adalberto: Fala!

Marjorie: Eu abri a Moma Maluca do Deucleciano.

Ane: Mentira!

Lu: E aí?

Marjorie: Tinha um facão dentro, eu morri de medo e joguei aquela boneca fora.

Nessa hora, o olhar da Marjorie mirou a televisão e ela viu a imagem congelada da noiva do Chucky.

Marjorie: Ai, gente, desliga essa televisão. Só de olhar essa boneca, me dá arrepio.

Eu desliguei.

Sara: Mas o que você quer que a gente faça?

Marjorie: A gente precisa achar essa Moma Maluca. O Deucleciano me ligou todo nervoso, perguntando por ela, que ela é a irmãzinha que ele mais ama.

Ane: E aí?

Marjorie: Eu disse que fui levar a irmãzinha dele para passear, que ela fica muito dentro de casa, precisava pegar um ar, ver as modas...

Adalberto: E isso colou?

Marjorie: Claro. Ele vive levando a Moma Maluca para passear. Antes da gente começar a namorar, ele saía muito com ela.

Lu: Que cara retardado!

Sara: Doido!

Ane: Ele precisa de um psicólogo.

Marjorie: Eu sei, mas depois, a gente vê isso. Agora, eu preciso encontrar essa Moma Maluca.

Adalberto: Impossível. Vamos fazer o que a Ane sugeriu para a Sara. Vamos num antiquário e compramos uma. Aí, você coloca lá no teu quarto de volta.

Marjorie: Não dá. A Moma Maluca dele é toda estilizada, tem tatuagem, piercing, cabelo pintado de roxo...

Eu e as outras primas estávamos perplexos.

Adalberto: Marjorie, corre desse homem! Ele é tão perigoso quanto a Moma Maluca!

Marjorie: Gente, eu não vim aqui para ficar ouvindo conselhos. Vocês podem me ajudar ou não?

E fomos para o aterro sanitário para onde todo o lixo do Rio de Janeiro é depositado. Por sorte, a Ane já tinha ficado com o melhor amigo do gerente de lá, que era louco para ficar com a Lu, que foi a nossa moeda de troca.

Depois de três horas revirando lixo, a Sara foi a primeira a desistir.

Sara: Gente, eu não aguento mais.

Adalberto: Na boa, nem eu. Não tenho talento para catador de lixo. Isso aqui fede muito.

Ane: Eu também estou morta.

Marjorie: Gente, não para, por favor. Eu preciso encontrar essa Moma Maluca.

Adalberto: Marjorie, é quase impossível. Fora que é desumano procurar uma boneca no meio dessa montanha de lixo. Vamos embora. Diz que a Moma Maluca foi sequestrada. Da mesma maneira que ele acreditou que você tinha ido levar a boneca para pegar um ar, ele vai acreditar que alguém é capaz de querer sequestrar aquilo.

Marjorie: Será?

Ane: Claro que sim.

Voltamos para a minha casa sem a Lu, que ficou de namorico com o gerente do aterro sanitário. No caminho, a Marjorie ligou para o Deucleciano fingindo que estava chorando e pediu para ele ir lá em casa.

Quando chegamos, ele já estava na portaria. Já estava tudo combinado. Só que eu ainda não estava preparado para chorar. Eu precisava de tempo para ficar com o olho arregalado até que ele começasse lacrimejar, mas não dava. O Deucleciano chegou muito rápido. Minha alternativa foi fingir que chorava com a mão no rosto.

A princípio, a Marjorie foi a única que conseguiu chorar. Mas, àquela hora, era de verdade. Era de medo.

Marjorie: Amor, eu estou arrasada dessa vida.

Deucleciano: O que foi que aconteceu?

Marjorie: Eu fui levar a Moma Maluca para passear com os meus primos e dois caras chegaram em cima de mim, me apontaram uma arma e levaram a tua irmãzinha. O Adal ainda conseguiu tomar a arma deles, a Sara e a Ane me ajudaram a tentar pegar a boneca, mas eles bateram na gente.

Eu queria rir. Eu jamais tomaria uma arma de dois bandidos.

Deucleciano: E por que você não atirou neles?

Adalberto: Eu?

Eu não sabia o que dizer e, quando disse, esqueci de chorar junto da fala.

Adalberto: Porque eu não vou atirar num bandido, por causa de uma boneca.

Deucleciano: Mas a Moma não é só uma boneca! É a minha irmãzinha!

O Deucleciano chorou copiosamente e a Sara e a Ane se emocionaram de verdade. Foi uma cena patética, mas até o porteiro do meu prédio chorou.

De repente e inesperadamente, um carro lindo para em frente ao meu prédio, buzinando para nós. Era a Lu com o gerente do aterro.

Lu: Você não vão acreditar. Assim, que vocês saíram, chegou um caminhão do lixo e despejou essa Moma Maluca lá no aterro. Eu vi na hora e peguei. Só pode ser a do namorado da Marjorie. Ela tem o cabelo roxo, tem piercing e tatuagem... Ó, salvei tua vida.

O Deucleciano correu para fora para pegar a Moma Maluca com a Lu. Ele abraçava e beijava muito a boneca. Ela estava imunda de lixo. E ele nem aí.

Deucleciano: Meu amor, minha vida. Eles abriram você. Que gente maldita! Coitadinha.... Ah, vida cruel! Eu quero matar quem te matou! Eu quero matar! Matar!

Adalberto: Ah, ela morreu? Não dá para mandar costurar a barriga dela e fingir que ela está viva? Não vai mudar muita coisa.

Pela cara do Deucleciano, parecia que eu tinha falado o maior absurdo.

Deucleciano: Como? Ela está morta! Não tem mais jeito! Eu só queria saber quem matou a minha irmãzinha. Eu ia torturar essa pessoa. Não ia matar de uma vez, não. Ela ia ver a desgraça antes de morrer.

A Marjorie soou frio só de imaginar se o Deucleciano descobrisse a verdade. Ele ficou a noite toda chorando. A Marjorie, que estava morta e não tinha o menor envolvimento afetivo com a Moma Maluca, dormiu a noite toda.

Há mais ou menos uma hora, cheguei em casa com a Ane e a Sara. Mais cedo, estávamos no enterro da Moma Maluca do Deucleciano com a Marjorie. A Lu também foi  com o gerente do aterro sanitário, que até agora, eu não sei o nome. De lá, eles foram para Cabo Frio. A Marjorie foi para casa e disse que precisava ficar sozinha.

Nós só fomos ao enterro para dar tempo para o meu pai e minha mãe juntarem todas as roupas e bonecas do Deucleciano, que estavam na casa da Marjorie, tirar de lá e trocar a fechadura.Alguém precisava fazer isso sem ele lá dentro.

No fim do enterro, as tralhas do Deucleciano já estavam todas dentro da mala do carro da Marjorie. No carro, ele estranho o caminho que ela tinha pegado para ir para casa.

Deucleciano: Por que você não pegou o viaduto?

Marjorie: Porque eu vou te deixar na tua mãe. Nessas horas, é de um bom colo de mãe que a gente precisa.

Na porta da casa da mãe do Deucleciano, ela contou que estava muito confusa, que ia ter que fazer uma viagem longa a trabalho e que precisava de um tempo. Entregou a bolsa com todas as coisas dele e disse que o procuraria quando voltasse.

Deucleciano: Você não falou nada dessa viagem antes?

Marjorie: Eu tinha medo de te decepcionar.

Deucleciano: Mas decepcionou.

Mas, àquela hora, já era tarde. Ele já tinha decepcionado ela muito mais. E a mim também.

Marjorie: Eu lamento. Lamento muito. Vou orar muito pela Moma Maluca.

Ela podia ter dormido sem essa.

Deucleciano: Eu acredito em Deus e sei que, de onde ela está agora, ela está muito bem. Ela era uma boa pessoa.

Oi? Eu ouvi pessoa?

Marjorie: A gente se fala quando eu voltar. Tchau.

E se beijaram pela última vez.

Enquanto isso, eu a Sara e Ane recomeçamos a ver "A noiva de Chucky" de onde havíamos parado ontem. E no finzinho do filme, a campainha toca.

Sara: Você está esperando alguém, Adal?

Ane: Sara, não começa você com essa pergunta de novela de novo, não, por favor.

Adalberto: Esqueceu que o porteiro, o entregador de flores e o religioso, que entrega livrinho, não marcam hora?

Eram a Marjorie e a Lu.

Adalberto: Ué, uma disse que queria ficar sozinha e a outra, pelo que eu sei, ia para Cabo Frio com o novo namoradinho. O que aconteceu?

Lu: Ah, aquele cara é um idiota. Sugeriu de levar outra mulher na viagem. Ele teve a cara de pau de me dizer se eu não topava transar com ele e mais uma, que era o sonho dele.

Ane: E aí?

Lu: Eu disse que não, né? Terminei com esse idiota. Fiz ele parar o carro na subida da Ponte, desci, peguei minhas coisas e fui para a casa da Marjorie.

Adalberto: Caramba, você terminou com o cara e eu ainda nem sei o nome dele.

Lu: Nem precisa mais. Para que saber o nome daquele encosto?

Ane: É... Virou passado.

Adalberto: Então, agora, eu tenho as quatro primas só para mim? Lu, você, que não quis fazer a três, agora, vai ter que fazer a cinco. Vamos beber muito a cinco, que tal?

Marjorie: Ótima ideia, primo. Tem cerveja aqui ou quer que eu compre lá embaixo?

Adalberto: Te muita cerveja aqui. Mas, quando acabar, a gente desce e compra mais lá embaixo.

Sara: Mas e o final do filme? A gente não vai ver? Já estava no finzinho...

Adalberto: Esquece esse filme. Já estou legal de histórias de bonecas malditas.

E bebemos até achar graça da Moma Maluca.

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